A origem dos tripeiros

por: Joel Cleto

Tripeiro. Ao natural ou residente do Porto é aplicada, desde há séculos, a alcunha de “tripeiro”. Porquê? Porque come tripas, obviamente. De resto, entre a rica gastronomia da urbe, emerge como o seu prato mais emblemático e identitário as “tripas à moda do Porto”. 

Tripas à moda do Porto

A receita tradicional impõe que as tripas, de vitela, sejam bem limpas, esfregando-as com sal e limão, sendo depois cozidas em água e sal. Mas este é, apenas, o início de um laborioso e apetitoso processo que, até à sua concepção final, fará juntar às tripas (os “folhos” e os “favos”) um conjunto muito significativo de outras carnes, nomeadamente mão de vitela, chouriça de carne, orelheira, salpicão, toucinho entremeado e frango.

Tripas à moda do Porto

O manjar é, também, devidamente confeccionado com feijão de manteiga, cenouras e alguma cebola. Salsa, sal, pimenta preta (moída na altura), louro e alguma banha garantem, mas também exigem, que se deixe apurar bem este prato. Fundamental, porque também se come com os olhos, é que seja servido numa bela terrina de barro, polvilhado com cominhos e salsa picada. E, também incontornável, que seja acompanhado por arroz branco seco.

Tripas à moda do Porto

É um prato delicioso. Mas, recorrendo às “tripas”, é também uma receita rara e sui generis que tem despertado a estranheza e a admiração de quem, vindo de fora da cidade, se depara com esta iguaria. Ora, tão exótico e singular prato tem que ter uma explicação. Nem que seja lendária. E é o que realmente acontece desde há muito tempo.

Com efeito as tripas à moda do Porto possuem uma lenda e são, segundo essa narrativa tradicional, resultado do profundo envolvimento do burgo na expedição militar comandada pelo rei D. João I que, em 1415, conquistou a cidade norte-africana de Ceuta iniciando, assim, o processo da expansão marítima e colonial que caracterizaria o nosso país durante os séculos seguintes.

Painel de azulejos de Jorge Colaço (1864 - 1942) na Estação de São Bento, no Porto: o Infante D. Henrique na conquista de Ceuta.

Lenda à parte, os acontecimentos históricos são relativamente bem conhecidos: rodeado de grande segredo, em 1414 o monarca decide organizar uma expedição a Ceuta com o objectivo de a conquistar. 

Gravura de Ceuta no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572

Precisava para isso de uma armada poderosa, tendo incumbido dois dos seus filhos, os infantes D. Henrique e D. Pedro, para a organizar. D. Pedro deveria preparar embarcações no Tejo, enquanto Henrique teria que fazer o mesmo nos estaleiros do Douro.

 Painel representando o Infante D. Henrique a fazer a entrega
 do plano das descobertas ao capitão da Armada.

Há já 30 anos que o rei possuía uma relação muito privilegiada com o Porto e sabia que poderia contar com o auxílio da cidade. Na base desta relação encontrava-se, entre outros, o facto, não mais esquecido pelo monarca, do apoio dos burgueses portuenses ter sido decisivo na sua chegada ao trono durante a crise de 1383-85.

João I de Portugal, conhecido como o Mestre de Avis e apelidado de "o de Boa Memória", foi o rei de Portugal e dos Algarves.

Aliás, reconhecido por tal auxílio, D. João I fizera questão de se casar no Porto com D. Filipa de Lencastre e de, posteriormente, aqui lhe nascer um dos seus filhos: Henrique, o mesmo que agora enviava, em missão secreta, a este burgo.

Casamento D. João I com D. Filipa de Lencastre, celebrado no Porto no ano de 1387.

Não obstante desconhecerem qual o objectivo final da tarefa que o trazia ao Porto, e que durante o ano seguinte ocuparia uma boa parte da actividade da cidade, a chegada à urbe do jovem infante, então com cerca de vinte anos, foi muito festejada por toda a população, das classes mais modestas e populares - a “arraia miúda” – aos mais influentes mercadores e poderosos burgueses.

Monumento erguido por ocasião do 5º centenário da morte do Infante D. Henrique, a sua construção iniciou-se em 1894, na presença do Rei D. Carlos, tendo sido inaugurado em 1900. O projecto é da autoria do escultor Tomás Costa. A estátua apresenta o Infante vestido de guerreiro junto a um globo terrestre, apontando simbolicamente para além-mar. No sopé, dois grupos alegóricos representando o triunfo das navegações portuguesas e da fé.

Além de ser filho do rei D. João, o facto de Henrique ser, também, natural do Porto, certamente contribuiu muito para esta forte empatia com as gentes da cidade. O Infante, nas palavras de Zurara na sua “Crónica da Tomada de Ceuta”, «era mui amado delles todos e o tinham casi por seu cidaddão».

O Infante Dom Henrique de Avis, 1.º duque de Viseu e 1.º senhor da Covilhã.

Embora ignorasse qual o destino final do numeroso número de embarcações que ia construindo nos estaleiros de Miragaia e do Ouro, todo o Porto se entregou de um modo muito significativo ao projecto. Além dos estaleiros junto ao Douro, também se envolveram nos trabalhos os cordoeiros do Campo do Olival (mais tarde conhecido por Cordoaria) manufacturando as cordas e cordoame necessários aos barcos, bem assim como os ferreiros da Ferraria de Baixo, junto a Miragaia, produzindo os apetrechos necessários às galés, naus, barcas e fustes que iam tomando forma nos estaleiros.

Estaleiros de Miragaia, de Eduardo Gomes (1956)

Outros confeccionavam os velames e, já nas periferias da cidade medieval, em terras da Maia, Gaia e Bouças (Matosinhos), outros havia que preparavam as provisões para uma numerosa frota que o Infante deu por concluída nos inícios de Junho de 1415. A armada zarpou da cidade no dia 10 desse mesmo mês e, à partida, era composta por mais de setenta navios «afora outra muita fustalha».

Partida da Armada do Infante D. Henrique para a Conquista de Ceuta (1415)

Poucos dias decorridos deu-se a junção com a frota organizada no Tejo pelo seu irmão e, revelado entretanto o objectivo da missão ao numeroso grupo de homens embarcados (vários milhares, entre os quais muitos portuenses) cerca de um mês depois consumava-se, com assinalável êxito, o assalto da cidade mourisca.

Conquista de Ceuta - 1415

Mas, o que é que tudo isto tem a ver com as tripas? É aqui que entra a lenda. Segundo a tradição, o Porto, além de todo o trabalho na construção dos navios, forneceu também tudo o que tinha para os mantimentos da frota. Nomeadamente carne. Todas as viandas que possuía haviam sido limpas, salgadas e devidamente acamadas nas embarcações. 

Chafariz Velho, Paço D' Arcos. Painel de azulejos que representam duas embarcações portuguesas do séc. XV-XVI : uma caravela latina (em segundo plano) e um caravela redonda; esta assim chamada, por envergar pano redondo no mastro de vante e no gurupés... 

A cidade, sacrificada, ficara apenas com as miudezas, nomeadamente as “tripas”, e foi com elas que teve que inventar alternativas alimentares. Surgia, assim, o prato das “tripas à moda do Porto” que acabaria por se perpetuar até aos nossos dias e tornar-se, ele próprio, num dos elementos mais característicos da cidade. De tal forma que, com ele, nascia também a alcunha de “tripeiro” para os habitantes do Porto.

Trata-se, obviamente, de uma lenda. Mas tão profundamente enraizada na Memória Colectiva da cidade que, para muitos, se trata de uma verdade inquestionável. O próprio monumento em bronze que o Porto erigiu, em 1960, em memória da frota do Infante D. Henrique é disso mesmo sintomático. Implantado junto aos antigos estaleiros do Ouro, no Largo António Cálem, esta escultura da autoria de Lagoa Henriques, que evoca a cidade “que lhe deu (à frota) navios, provisões e nela embarcou”, não deixa de representar, entre duas figuras humanas, uma peça de carne esventrada, lembrando que por aqui só restaram as tripas.

Escultura da autoria de Lagoa Henriques no Largo António Cálem, Porto

Trata-se de uma lenda. Evidentemente. As origens deste prato, tão complexo, são seguramente bem anteriores e implicaram um longo contexto cultural de aceitação e de prática culinária que não podemos restringir a um único e episódico acontecimento, a um verdadeiro epifenómeno, como foi o eventual esgotamento e desaparecimento de carne na cidade durante o curto espaço de tempo que coincidiu com os preparativos da armada de Ceuta e os meses que se lhe seguiram.

Trata-se de uma lenda. Mas, como todas, tem também o seu fundo de verdade. Ou, pelo menos, pode fornecer algumas pistas credíveis que importa valorizar. Neste caso o indiscutível empenhamento e sacrifício que a cidade fez para corresponder ao pedido de apoio de D. João I e do Infante D. Henrique nos preparativos do que viria a ser a arrancada da expansão marítima portuguesa.

Mapa original do século XV, que mostra a parte até então conhecida pelos europeus.

Mas, qual será, afinal, a origem das “tripas à moda do Porto”?

É provável que tenhamos que recuar muito mais no tempo para descortinar a génese deste prato. Até ao século I a. C. E é possível que tenhamos que nos deslocar até à Suábia, uma região entre o Reno e o Danúbio, no sul da actual Alemanha, numa zona de contacto com a República Checa. Por essa época aí se localizavam tribos de um povo bárbaro designado por suevos, motivo pelo qual esta região é também apelidada por Suévia. Este povo confeccionava na sua dieta alimentar tripas (nomeadamente do estômago) das vacas.

E, ainda hoje, tal como no Porto, tais pratos fazem parte da gastronomia tradicional da região (são as drzky, em checo). Ora, como se sabe, após a queda do Império Romano, os suevos atravessaram a Europa, passaram pela França (onde o “cassoulet” de Carcassonne, apesar de não ter tripas, é muito parecido em tudo o resto às “tripas do Porto”), cruzaram demoradamente o norte da Península Ibérica (onde ainda hoje são famosos os “callos asturianos”, confeccionados com as tripas do estômago de vitela e feijão, muito semelhantes ao prato portuense) e acabaram por se fixar no noroeste da Península, onde estabeleceram um reino, sendo o Porto uma das suas principais cidades, chegando mesmo a ser a capital.

                    Drzky                                                 Cassoulet                                                Callos Asturianos

Desta forma as “tripas à moda do Porto” poderão remontar ao século VI e à época suévica. Ou será esta, na falta de estudos histórico-gastronómicos mais aprofundados, uma tese condenada a ser transformada, ainda que com uma faceta erudita e urbana, numa nova lenda?

E a lenda continua…



(Joel CLETO – Lendas do Porto: A Origem dos Tripeiros. O Tripeiro, 7ª série, vol. XXVII (7), Porto: Associação Comercial, 2008, p.210-211.)

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